Palavras muito simples tem a capacidade de carregar
e evocar um conjunto muito complexo de ideias. Isso é bem verdade com respeito
à palavra “Lúcifer”. Essa palavra traz em si todo um conjunto de ideias acerca
de quem seja o diabo, Satanás. O uso continuado dessa expressão tem sido responsável por
sustentar toda uma demonologia extra-bíblica, moldando, por clara eisegese, a forma como se interpreta diversos bíblicos,
como Isaías 14 ou Ezequiel 28.
Essa ideia é basicamente a seguinte: um dia aquele
que é hoje Satanás teria sido um “anjo de luz”, por isso chamado Lúcifer. Mas
por ter se rebelado contra Deus, ele teria se tornado “Satanás”, deixando de
ser um anjo para se tornar um demônio.
O uso cristão da expressão “Lúcifer” foi uma
contribuição permanente do teólogo e pai da igreja Jerônimo de Strídon (ainda
que anterior a ele), tradutor responsável pela Bíblia que durante séculos foi
normativa no ocidente: a Vulgata Latina; tal tradução (seguida de traduções
posteriores, como a King James Version) serviu para perpetuar a ideia corrente
sobre quem seria o diabo e qual tenha sido sua origem. Embora Jerônimo seja o
responsável pela tradução, não se pode atribuir a
ele a culpa pelo uso da palavra da forma como se observa atualmente; na
realidade, a tradução de Jerônimo está correta. O real problema é
a construção interpretativa que se associou a tal tradução; essa interpretação
acabou produzindo um falso significado para a palavra “Lúcifer”.
A palavra “lucifer”significa “luzeiro” em latim. É
originalmente o nome dado ao planeta Vênus, por ser um astro que resplandece no
céu, refletindo muita luz solar. Parte desse uso continua na língua romena, na qual esse mesmo astro é ainda chamado Luceafărul (o luzeiro), nome do poema do célebre poeta romeno
Mihai Eminescu. Vênus é chamada “Estrela da Manhã” (ou “Estrela d'Alva”) por
ser visível ainda cedo no dia. O texto em questão é
Isaías 14:12:
“Como
caíste desde o céu, ó estrela da manhã, filha da alva! Como
foste cortado por terra, tu que debilitavas as nações!”
(Isaías
14:12)
QUOMODO
CECIDISTI DE CAELO LUCIFER QUI
MANE ORIEBARIS CORRUISTI IN TERRAM QUI VULNERABAS GENTES”
Entretanto, Jerônimo usa a expressão “LUCIFER”
muito coerentemente, utilizando-a não como um nome para o diabo, mas
simplesmente como a tradução da “estrela da manhã” ou “estrela da alva”. Esse
uso aparece no texto de 2 Pedro 1:19:
“E
temos, mui firme, a palavra dos profetas, à qual bem fazeis em estar atentos,
como a uma luz que alumia em lugar escuro, até que o dia amanheça, e a estrela
da alvaapareça em vossos corações.”
(2
Pedro 1:19)
ET
HABEMUS FIRMIOREM PROPHETICUM SERMONEM CUI BENE FACITIS ADTENDENTES QUASI
LUCERNAE LUCENTI IN CALIGINOSO LOCO DONEC DIEES INLUCESCAT ET LUCIFER ORIATUR
IN CORDIBUS VESTRIS
Assim sendo, a palavra latina “LUCIFER” não tem
qualquer relação com um “anjo de luz”. Não diz respeito a uma suposição de que
Satanás teria sido um “portador da luz”. Trata-se simplesmente do nome de uma
estrela, usada no texto de Isaías 14 com
referência simbólica a um indivíduo específico. Não se trata, em absoluto, de
um nome próprio (no sentido moderno) de um indivíduo.
Na realidade, se lido em seu devido contexto, o
texto de Isaías 14 se
refere a um ser humano, não a um anjo ou demônio. Seu contexto maior é um
conjunto de profecias de juízo (pesos) contra nações estrangeiras
(Babilônia, Filístia, Moabe, Síria, Etiópia, Egito, etc). O contexto mais
imediato é o Peso da Babilônia, que se inicia no capítulo anterior.
Absolutamente nada no texto dá a entender que se trata de um anjo ou demônio,
quiçá de Satanás especificamente. O objeto dessa profecia é o “rei da
Babilônia” (14:4), um homem (14:16) a ser lançado na sepultura (14:19). A
profecia tem traços idênticos àqueles apresentados na profecia de Daniel
4 contra Nabucodonosor, rei cujo texto foi dado por
Deus, o qual chega a lhe chamar “meu servo” (Jeremias 25:9). De fato,
muitos são os reis destituídos por Deus por sua soberba, por se fazerem
semelhantes ao Altíssimo.
Outro texto, ainda mais forte, que se aplica a
Satanás, é Ezequiel 28. Na próxima postagem, mais sobre esse texto.
G.
Montenegro
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